Pular para o conteúdo

Arquivo de

A mulher que matou os peixes… e outros bichos

Gif animado que não resisti em fazer com as fotos lindas de divulagação da peça. Com Luciana Fróes, Mariana Lima e Renato Linhares

Há autores que entram para o nosso patrimônio mais profundo, são poucos. Mas, quando acontece, corremos o risco de querer tombá-los numa espécie de fidelidade, quase um culto, que em nada acrescenta à oxigenação, ou seja, à transmissão e perpetuação da obra desse mesmo autor. Com Clarice não poucas vezes acontece isso, a enrijecemos, num enquadramento que só favorece o nosso mais fácil deleite, e miséria. Risco que não só os escritores canônicos correm, mas não sei por que Clarice me parace mais suscetível a certo tipo rasteiro e medroso de leituras (sacralizadoras).

Entretanto, essa minha visão pessimista se dissipa após assistir uma  peça pra lá de boa como “A mulher que matou os peixes… e outros bichos”,  com Mariana Lima, Luciana Fróes, Ricardo Linhares sob a direção de Cristina Moura, em cartaz até dia 28/03 no SESC Avenida Paulista.

Eu já havia lido não sei quanto vezes “A mulher que matou os peixes” e me comovido reiteradamente. Em verdade, esse livro foi como uma espécie de chave para entrada na obra de Clarice, mesmo depois de eu já tê-la lido um bom tanto. Nesse livro infantil, figuram temas e personagens, bichos e fantasmas que atravessam quase toda a obra da autora, como os da culpa, da morte e o da própria escrita. Entretanto, num diapasão que só a sensibilidade de Clarice poderia estabelecer, isto é, para crianças, mas com elas tratadas como tais, com a perversidade e a sensibilidade extremadas que lhes são inerentes, as quais, aliás a autora parece ter carregado consigo para o resto da vida.

Crueldade e delicadeza que estão na peça, mas em cores, coisa que nunca enxerguei ao ler o livro, eu o via em preto e branco, com apenas os peixinhos em vermelho, leitura que não credito apenas as ilustrações em p/b do Carlos Scliar da minha edição do livro, mas a minha própria limitação sensível (aqui cabe o paradoxo). O peso de culpa e dor e a pouca leveza e ludicidade do meu olhar não me permitiam ver nem de longe o que essa peça me ofereceu como possibilidade de graça em meio a dor (de redenção?), como possibilidade de riso, de leveza, de show de banda e circo e picadeiro e princesas e casinhas de boneca e bolhas de sabão. De morte casada à vida, de vida.

Eu agradeço à peça ao que ela me mostrou de cor e sons e jogos e jeitos de corpo que eu não conseguia alcançar. Não é sempre que se ganha uma Clarice tão Clarice, mas tão outra!, e num mesmo dia. Recomendo às pessoas de coração bom e às de nem tanto. Não há como passar incólume, as crianças adoram. Dá até vontade de ser mãe e ter aguçados outros níveis de entendimento de uma criança para além daquela que fomos (e somos?). Pois é. As reflexões e desejos que uma bom livro e uma boa peça nos revelam não são de pouca monta. Como as que envolvem a maternidade e suas culpas e perdões. O que eu estou dizendo? Paro por aqui senão me entrego e não é o caso. Que cada um veja a peça e suas, nossas, várias Clarices.

Já temos um passado

Bonito que dói